Cada um de nós é por enquanto a vida. Que isso nos baste.

José Saramago

sexta-feira, 16 de novembro de 2012




antes tarde do que sempre


O que aconteceu no ontem que desde ele me rouba o sono o não saber dos teus caminhos?
Chegança não houve e o sol nasceu quando o aberto dos meus olhos procurava presença na curva da ribeira e só ausência fazia ali a sombra de nada. Os passos foram pra missa e de lá voltaram com cadência de perdão. Nem eram meus que de há tempos não cruzo aquele terreiro aonde o sino acorda as andorinhas. Que de há muito vivo no esquecimento que os anjos têm de mim. E os santos, todos eles. Deus do céu, o Pai eterno. E o vigário nem me passa pela porta, atravessa pro outro lado, vira a cara pra minha cara de mulher perdida. Nem os cheiros dos meus doces fazem rastro no quintal pras pegadas das vizinhas que de mulher de vida fácil nem os doces têm sabor. Só o moleque de recados atreve os grandes olhos em troca de
levar esta pergunta feito carta de saber em que abraço tu dormiste que não no meu. Faço renda, bordo pano, lavo prato, passo o tempo que não passa e o buraco no meu peito engole tudo e faz saudade.
Logo mais já vai ser noite na janela do quintal e azuis as  goiabeiras, mesa posta, o café passado fresco e me dirias que é certeza o que sonhei, mas não vens.E me esqueces e te esqueço e já nem sei se és pão adormecido, se és água de nascente.

***

Voltei, Maria. Vi da vida, a vida quase. Vi do mundo, a noite clara. Vi da tarde, os temporais e voltei, Maria.
Vi abraços mornos, ternos, esperanças, eu diria. Vi das bocas, as palavras. Vi dos gestos, o adeus. Maria, voltei. Fiz cruzada e travessia, cruzei rios, becos, vales, vacilei na encruzilhada, mas voltei, Maria. Pela luz do seu olhar, fogo fátuo na neblina. Pela sombra dos seus gestos, flor nascida no orvalho. E o calor do seu regaço, berço frágil dos meus sonhos, voltei, Maria. Fiz distância dos abraços que meus braços esqueceram. Fiz passado de outros corpos que meus braços acolheram. Fiz meu norte da saudade e voltei.
Suas tranças, seu cabelo, negro manto da nudez, cobertor do meu depois. Seu calor, os seus gemidos, melodia em tom maior no ardor do meu durante. Suas mãos, seus dedos, língua, seios, bunda, sua porta escancarada, seu fragor despetalado. Por isso e tudo isso, Maria, voltei. Por seus doces e temperos. Por seus dengos, vendavais. Sua faca na cozinha, o seu cofre de porquinho, seu diário, seus bordados. Por um nada e por um tudo, eu voltei. Nas pegadas dos meus passos. No traçado dessa dor que fez estrada em minha vida na estrada de nós dois, eu voltei. E encontro seu silêncio, sua voz calada, morta, seu olhar perdido longe, seu cabelo já tão branco, suas mãos pousadas frágeis no seu colo, abandonadas. Suas pálpebras cerradas, essa dor no seu sorriso, esse terço em sua mão, essa flor em seu caixão, essa vida posta fora. Porta a fora a minha vida. Vida adentro a sua morte.
E pra sempre o nunca mais.


conselhos


Mãe dizia que não era pra lavar a cabeça nos dias de verter sangue e eu, no meio de tanto sangue, quando ele me disse que meus cabelos cheiravam à primavera.
Mãe dizia que homem é tudo igual e que ainda não nasceu aquele que vai fazer uma mulher feliz e eu, no meio de tanta felicidade, quando ele me fez nascer mulher.
Mãe dizia que se eu desse a minha coisinha ia reta no caminho do inferno e eu, com aquela coisona dentro de mim, ia de quatro no caminho do paraíso.
Mãe dizia que mão de homem é cheia de dedos, que boca de homem é só pra falar mentira, que pau de homem é pra fazer mulher chorar e eu, com aqueles dedos no meu corpo, com aquela boca na minha vergonha, com aquele pau me fazendo chorar, sim, mas por onde que não os olhos.
Mãe diz que sou uma puta e eu, toda linda, perfumosa e arreganhada, digo que puta é a puta que me pariu.
uma carta de amor



Fulano,
Revejo e te asseguro: tô no lucro! De certo, só te sei por esparsas notícias dadas por Beltrano e por Cicrana que te soube por presença no congestionamento. Deduzi que tu trocou de carro, que de mulher eu já sabia. E desde sempre.
Nunca dormi com a esperança, jamais acordei que não fosse com a dúvida, mas o remorso não se senta à mesa comigo. Faria tudo de novo. E outra vez. E sempre pois de mais valia foram
os minutos em seus braços que minhas horas em minhas mãos. Eufemismo, sim. Não vou escrachar a minha solidão escrevendo “siririca”.
Tô puta, Fulano, tô muito puta, mas não sou puta por vocação. Por talento, sim. Foda saber que aquela mixaria que tu deixava no criado mudo era pagamento, não pela minha presença no teu
durante, sim pela minha ausência no teu depois. E a merda da frase escrota: “uma bobagem pros seus alfinetes”. Alfinete é o caralho. O teu caralho. Nada se parece mais com um alfinete.
Não esqueço a merda da história que tu contou sobre uma raposa e umas uvas. Não esqueço porra nenhuma do que tu dizia na mesa do boteco, lembro o brilho de cada perdigoto teu refletindo
a filosofia barata que tu vomitava enquanto teus dedos me subiam pelas coxas e entravam pela minha buceta adentro como se fossem dono e senhor, dois pra lá, dois pra cá. “Tu deixaste que
murchassem minhas flores, meu bouquet de fantasias”. Lero-lero, cara. Papo furado. Papo aranha.
Mas tô no lucro, podes crer. E nem falo do Wanderson porque esse, coitado, já nasceu filho da puta e, como tal, nunca vai saber, desta boquinha que a terra há de comer, que o pai dele só tem de
parecença com ele o fato de também ser filho da puta. E nem falo que seja lucro eu saber dos teus segredos, das manias e das taras. Vela no cu, puta que pariu. Até aquela de sete dias que
eu guardava pra acender pra minha mãe, Iansã, eparrei Oyá. 
Mas tô no lucro, Fulano, podes crer, porque a cada vez que me arreganhei pro teu tesão foi por amor, seu filho mal parido de uma égua, foi por amor. POR AMOR!
Fulana
 




perplexidades, perspectivas


Queria vê-lo dobrar a esquina e ter certeza de que ele iria sem olhar pra trás, sem guarda-chuva, no temporal. Queria ter a certeza de que ele iria.
Riu.
Riu diante do absurdo, da chuva, da madrugada que deixava a rua deserta. Riu da vida absurda, deixada numa madrugada de chuva. Riu da chuva, que absurda a deixava ensopada na janela, olhando a rua deserta e esperando vê-lo dobrar a esquina, para ter a certeza do absurdo. Da absurda vida sem ele e da chuva.
Abriu a janela e pouco se importou com a chuva, com o vento.
Espalharam-se os papéis, seus cabelos, um copo voou longe e espatifou-se no chão.
Pouco se importou.
Pouco importava a chuva, o vento, os cacos de vidro, o vinho derramado. A gripe, a pneumonia, a tuberculose. A vida ou a morte, pouco importavam.
Queria ter certeza de que ele iria.
Queria ter a certeza de que os caminhos da chuva, na vida deserta, na madrugada absurda o levariam para sempre.
E ele dobrou a esquina.



nascimento de vênus


era pra ser pra todo o tempo eterno mito por ter sido terno e muito e nada é mais que pouco quase nada só lembrança esburacada onde seu rosto se desfez sua voz no silêncio se perdeu e seus passos ecoaram   na negra madrugada despertando os vendavais  e a eternidade liquefeita que me inundou nos segundos  do seu gozo que em água transmutado se me escorre pela cara a espuma onde nasci  enluarada hoje é lavra de vulcão e eu sou  lilith desvairada  trago fogo nos meus beijos troco afagos por desejos sei gemer gata no cio sei uivar fera enjaulada sei fingir que sou amada  presa prenha do amor de um canalha.
E que me venham tantos quantos,  e que me fodam pelos becos,  noites frias,  madrugadas,  que nas mãos de cada macho há a marca de você,  que em cada louca língua há o gosto de você,  que na na porra deles todos  há um nada de você.